
A LUTA DENTRO E FORA DOS JOGOS: A REALIDADE DO PRECONCEITO E DO ASSÉDIO

Se no desenvolvimento de jogos as mulheres são minoria, a realidade do consumo é bem diferente. Segundo a 7ª edição da Pesquisa Game Brasil (PGB), lançada em 2020, 69,8% das mulheres no Brasil jogam jogos eletrônicos, independentemente da plataforma. Fora isso, pelo quinto ano consecutivo do estudo, o público feminino aparece como maioria entre os gamers brasileiros, representando 53,8% dos jogadores no país. Em pesquisa realizada pela reportagem, em novembro de 2020, podemos traçar o perfil destas jogadoras.
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As jogadoras de videogames brasileiras possuem em sua maioria entre 19 e 24 anos, são provenientes da região sudeste, namoram (e seus companheiros(as) sabem da preferência por jogos e jogam junto), não possuem filhos e 45,2% delas usam mais de uma plataforma para jogar.
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Infográfico: Diuly Moreira
Infográfico: Diuly Moreira
Infográfico: Diuly Moreira
Apesar de enfrentarem os maiores chefões de jogos, vencerem campeonatos e estarem em pé de igualdade e jogabilidade com os homens, as mulheres precisam constantemente enfrentar dois grandes vilões: o assédio e o preconceito. 84,7% das participantes da pesquisa, sofreram ou presenciaram algum tipo de preconceito e/ou assédio durante algum jogo online, contra apenas 7% que nunca passaram por esse tipo de situação. Na pesquisa, nossa equipe colheu alguns relatos (os relatos completos podem ser lidos na pesquisa em anexo) que demonstram os casos de agressão que as mulheres sofrem nos jogos.
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“Quase sempre eu me encaixo no ‘perfil mulherzinha’ nos jogos, gosto de jogar de suporte ou algo que ajude o grupo... Então apenas o estereótipo já engatam em invites que resultam em nossa, você é garota mesmo. Você é de onde?". Eu era capitã de um time semiprofissional de LoL e marcava stream através de um grupo de Whatsapp onde tinham vários outros capitães e um deles pegou meu numero e começou a dizer que tinha me achado muito linda e dizendo que tinha várias coisas e de cara eu agradeci e disse que não estava interessada, então ele me mandou a foto de uma arma e começou a digitar, não vi o que veio depois porque eu bloqueei logo, fiquei muito assustada.”
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“É simplesmente desgastante, já sai chorando de partidas por causa de comentários machistas etc de caras babacas. E o mais engraçado é que se eu não for conivente com suas atitudes eles sempre mandam "essa ai é feminista imunda", como se eu não tivesse opinião própria.”
Relato obtido na pesquisa feita para a reportagem.
Relato obtido na pesquisa feita para a reportagem.
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Infográfico: Diuly Moreira
Infográfico: Diuly Moreira
Esses são alguns dos comentários que meninas escutam e leem durante partidas de jogos onlines. Até quando recursos de alguns jogos são disponíveis para aumentar a jogabilidade, como o sistema de chat por voz, estes são usados contra as mulheres, 75,8% delas só usam esse tipo de sistema com amigos e conhecidos, quando usam com estranhos acabam ouvindo ofensas, como “puta”, “vai lavar louça” etc.
“Estava em chamada de áudio com alguns amigos. Não estava falando, pois sou tímida e estava com vergonha. Então, meu amigo pediu para eu interagir com eles, eu disse tudo bem, até que um dos amigos deles começou a dizer foda-se ela, não quero que ela fale. Fiquei assustada, porque não tinha feito nada e ele continuou me xingando e dizendo coisas, como vai esquentar a barriga no fogão e esfriar na pia, tá fazendo o que aqui?. Na hora, minha única reação foi xingá-lo de volta, mas quando a partida terminou acabei desabando e chorei muito. Fui xingada apenas pelo fato de ser mulher e ele estar nervoso por estar morrendo muitas vezes, descontando essa frustração em mim".
“É simplesmente desgastante, já sai chorando de partidas por causa de comentários machistas etc de caras babacas. E o mais engraçado é que se eu não for conivente com suas atitudes eles sempre mandam "essa ai é feminista imunda", como se eu não tivesse opinião própria.”
Relato obtido na pesquisa feita para a reportagem.
Relato obtido na pesquisa feita para a reportagem.
“Antigamente, todos os meus nicks em jogos eram femininos e, na maioria das vezes, fui xingada antes mesmo da partida começar. Me chamaram de vagabunda, me disseram para parar de jogar e lavar louça, limpar a casa e cozinhar. Atualmente, jogo com o nick neutro, justamente por causa do preconceito.”

Fonte: Arquivo Pessoal
Na pesquisa foi questionado sobre o uso de nicknames nos jogos, 54,1% declararam utilizar um nick feminino, 40,8% utilizam nick neutro. Em relação a esse tópico, as jogadoras relatam que recebem mais assédio ou passam por situações de preconceito. E não somente elas, até os homens que usam “nomes” ou personagens femininos passam por isso. O gamer Max Martins, 27, relata que nunca usou um nome feminino, mas quando usou personagens femininas já foi chamado de vagabunda, mesmo usando um nome masculino. “Mulheres em comunidades de jogos, seja em MMORPGS ou em qualquer outro tipo de jogo, são subestimadas e muitas vezes desrespeitadas. Chega ao ponto de ser necessário criar regras específicas para impedir que outros jogadores sejam inconvenientes com elas. (...) Essa semana insinuaram que eu e meus amigos deveríamos arrumar uma mulher pra fazer divulgação da guilda, pois as mesmas ‘atraem’ mais pessoas”, conta Max.
Para a gamer, advogada e estudante de design de moda, Ana Carolina Centuviron, 26, a realidade é cruel e mulheres necessitam colocar suas habilidades sempre à prova. “Não basta jogar bem, é preciso jogar duas vezes melhor que os homens para não recebermos nenhum tipo de xingamento nos jogos. É surreal”, desabafa. À respeito de situações de preconceito e assédio, a gamer afirma já ter enfrentado esse tipo de situação. “Infelizmente já passei, tanto em chamada com conhecidos, como pelo chat escrito. É péssimo. Durante as partidas, procuro usar um nick neutro (que não me identifica como mulher, nem como homem) e muitas vezes, uso pronomes e adjetivos masculinos referidos a mim, como estou ficando maluco. Pequenos detalhes como estes induzem a mente dos players a acharem que sou um homem como eles, e não provocarem ou me assediarem por ser mulher”, afirma. Ana Carolina também comenta sobre as atitudes diretas e indiretas que os meninos tomam, que podem agravar a realidade feminina nos games. “Atitudes diretas, creio que o fato de criticar de forma totalmente gratuita o fato de haver uma mulher em alguma partida, coisa não rara de se ver. Já atitudes indiretas, estão mais ligadas ao acobertamento dos homens, muitas vezes um colega do player que faz algum comentário machista não o repreende, passa a dar risada junto e, com isso, incentiva o comportamento tóxico da comunidade”, reflete.

Fonte: Arquivo Pessoal
Confira a entrevista completa.
Sobre como esses ataques podem ser prejudiciais à saúde mental das mulheres, a psicóloga Priscila Sanches nos conta que mulheres com a autoestima baixa não irão conseguir perceber que os insultos falam mais sobre o homem que o pratica, do que sobre ela, sendo possível que esses ataques gerem gatilhos em já passou por algum tipo de violência antes. ”Isso é perigoso, pois pode desencadear uma crise depressiva ou ansiosa, por exemplo. Também é possível que, ao acreditar nesses xingamentos, essa mulher desista de jogar ou se convença de que não é boa o suficiente.” Ela também orienta como as gamers podem cuidar de sua saúde mental depois de sofrerem ataques nos jogos, a profissional enfatiza a necessidade de sororidade. “É importante que essas meninas busquem uma rede de apoio entre elas mesmas. Criar grupos no Facebook/Whatsapp em que possam compartilhar essas angústias, percebendo que não estão sozinhas, evitando naturalizar esses ataques e se ajudando mutuamente. Também é essencial que elas se informem, leiam sobre cultura, sociedade, feminismo: pautas que as farão perceber que os insultos gratuitos não dizem nada sobre elas. Por último, buscar terapia é indicado quando esse sofrimento estiver intenso e quando essas meninas encontrarem dificuldade para compreender que esses ataques não as definem”, explica.
Para as jogadoras, as empresas precisam encontrar formas mais eficazes de punir as pessoas que cometem atos de machismo, preconceito (não somente contra mulheres, mas com por exemplo, o público LGBTQ+), assédio, racismo entre outros. Sugestões como vincular a criação da conta ao CPF, banimento por número de IP, além de ações de combate como colocar mais mulheres dentro das empresas que desenvolvem e administram o jogo, sempre se posicionar quando esses casos ocorrem e, não somente quando lhes convém além de campanhas de conscientização para combater esses casos. “Realizar um trabalho mais profundo de conscientização e educação da comunidade gamer, concomitantemente em adotar punições mais severas em casos como esses. Além de investir em políticas de incentivo e inclusão de mulheres que fazem conteúdo nesse nicho, bem como, contratar e incluir mulheres no cenário competitivo, desse modo, trazendo mais representatividade, visibilidade e segurança ao público feminino”, comenta uma das participantes da pesquisa.