
FINAL LEVEL... TRANSformação

Se para uma mulher cis a realidade do mundo gamer é difícil, para as mulheres trans ela é ainda pior. Das 256 desenvolvedoras de jogos digitais que participaram do II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, apenas 118 afirmaram possuírem um quadro de diversidade (afrodescendentes, indígenas, trans e estrangeiros) entre seus colaboradores, totalizando 334. Deste número, apenas 12 colaboradores são trans (0,4%), sendo menor até mesmo que o número de colaboradores estrangeiros, conforme tabela a seguir.
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A falta de representatividade trans no mercado é vista com alguns casos que personagens transsexuais são alvos de violência absurda. Em 2015, um jogo chamado "Kill The Faggot" ["Mate a Bicha", em uma tradução literal] estava disponível na plataforma de jogos Steam, cujo o único objetivo era matar personagens gays e transexuais. Os alvos eram identificados com coletes cor-de-rosa ou um baby-doll pink. Ao matar os alvos, o jogo mostrava frases como "Faggot Killed" (Bicha Morta) ou "Transgender Kill" (Morte de Transgênero). Essas mortes aumentavam a pontuação do jogo, porém, caso o jogador errasse o alvo e matasse uma pessoa heterossexual, os pontos eram perdidos. O jogo foi removido da plataforma horas depois que seu lançamento. Em um artigo (em inglês) do site Cracked, o autor fala da extrema reação de jogadores ao notarem personagem trans, gay ou lésbicas em seus jogos favoritos, no texto há relatos de usuários enfurecidos com a representatividade inserida nos seus universos digitais.

"Kill The Faggot" - jogo transfóbico e homofóbico cujo o objetivo era matar pessoas trans e homossexuais

Streamer Rebecatrans. Fonte: reprodução Twitter
No Brasil, a streamer drag queen não-binária, “RebecaTrans” sofreu com transfobia e racismo durante uma partida de Valorant, em que foi chamada de “travecão”, um termo altamente pejorativo.

Relato de Rebeca sobre o caso de racismo e transfobia. Reprodução Twitter
A paulista Ariel Nolasco e a cearense Vanessa Nunes são mulheres trans que foram criadas dentro deste universo. Ariel ganhou o seu primeiro videogame aos 4 anos e Vanessa foi criada dentro da primeira locadora de videogames de Horizonte (cidade da região metropolitana de Fortaleza). Para elas, o mundo digital foi um apoio na descoberta como mulheres, pois foram apresentadas a personagens femininas com personalidades fortes e marcantes. A paulista conta que em alguns momento de sua infância - por conta de toda cultura machista da sociedade - sofreu preconceito de primos por gostar de jogar com meninas (seja por serem mais bonitas ou mais fortes) e não gostar de jogos de futebol.

Vanessa Nunes, mulher trans e gamer. Fonte: Arquivo pessoal.
Já para a cearense, isso não ocorreu, o que acontecia era a frustração de perder uma criança jovem. “Se aconteceu [casos de bullying por jogar com personagens femininos] eu não consegui identificar na época, eu não me lembro disso acontecer, até porque eu tive um ambiente mais ‘safe’. Meu irmão mais velho é gay e pegava personagens femininos, e os amigos dele, por respeito a ele, não mexiam comigo neste aspecto, sabe?”, relata Vanessa.

Ariel Nolasco, relata os episódios de transfobia que vivenciou em jogos. Fonte: Arquivo Pessoal
Elas relatam diversas situações em que tiveram que lidar com o preconceito de serem mulheres, e viram isso piorar quando descobriram que eram mulheres trans do outro lado da tela. Ariel lembra que durante uma partida do jogo Overwatch®, estava utilizando o sistema de chat de voz e jogando com uma personagem chamada Mercy (no jogo trata-se de uma suporte), quando deu uma call (na linguagem dos games, é quando alguém chama atenção do time para realizar uma jogada) e os outros jogadores questionaram: “é uma mulher que está falando?”. A gamer afirmou e eles continuaram: “mas, é uma mulher de verdade?”. perdeu o foco e começaram a questionar aspectos íntimos da jogadora.
Se ela jogava mal, os outros jogadores ofendiam com frases, como “vai traveco fala!“ ou “tinha que ser esse traveco”. “Com mulheres trans é diferente, a gente sofre porque acham que só temos que jogar de personagem de suporte, mas a nossa vida tá ali para ser exposta, ser um objeto de curiosidade.” comenta a gamer. Devido a esses tipo de situações, Ariel chegou a ficar mais de um ano sem jogar.
Mandando um recado para mulheres (cis e trans), elas recomendam mudar de jogo, tentar novas comunidades e modos de jogo, tentar coisas novas. “Quando esse tipo de violência ocorre em um local que deveria ser o nosso refúgio é muito dolorido, mas a gente não deve deixar de viver e de fazer as coisas que a gente ama por causa do preconceito alheio, por causa da violência alheia. Apesar de ser muito difícil, a gente sempre tem que se edificar e se fortalecer para poder combater esse tipo de situação, meu conselho é: não desista e seja forte! Nós mulheres, a gente não encontra a força, a força que encontra a gente. A gente sempre consegue ultrapassar isso”, finaliza Vanessa.
Entrevista com Vanessa Nunes
Entrevista com Ariel Nolasco
